Tenho (tive) uma birra histórica com os Engenheiros do Hawaii. Gostei muito (basicamente até o Gessinger, Licks & Maltz, de 93, com altos e baixos no caminho), depois passei a não gostar com força - até me ligar que não gostava mais por comodismo (é muito chato ter que defender um ponto de vista toda vez que vc o expõe) do que por questões pessoais mesmo. E revi muita coisa que acabei perdendo; passei a gostar sem problemas, ou sem me importar se seria achincalhado ou não (basicamente passei pela mesma coisa com a Legião Urbana, mas isso fica pra outro post). E vi que achava certas coisas cretinas por ser EU o cretino, não a banda. Exemplo: esta música que posto agora. Quando ele falava que todos eram iguais, mas uns eram mais iguais que os outros, "Revolução dos Bichos" era mais um nome de um musical da Globo do que literatura. George Orwell era o de 1984, aquele que falava do "Grande Irmão", etc, etc. Logo, quando li o livro, a letra fez um sentido tremendo - embora ainda fosse resistente a banda. E a postura "tô cagando pra isso" do Humberto Gessinger me fez MESMO dar mais valor. Porque era muito fácil o cara ter virado figurinha carimbada mainstream. Em vez disso continua escrevendo suas músicas. Goste-se ou não, não tem como negar: O (grupo) Engenheiros do Hawaii, e o Humberto Gessinger em particular, são dos artistas mais nem aí do rock nacional. Livre pra lançar disco quando quiser, livre pra abrir concessão e gravar um Acústico MTV - do jeito que quiser, com o repertório que quiser. E é isso. Vamos à música, então.
Ninguém = Ninguém
Engenheiros do Hawaii
Composição: Humberto Gessinger
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Ou seja: tem pra todo mundo. Tantos quadros para serem vistos, de tantas formas possíveis...
Há tanta gente pelas ruas
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
Cada rua, cada bairro, cada "quebrada" com aquilo que tem de bom e ruim - que é o que, no fim das contas, a torna única. Então não faz sentido discutir qual, quem, o quê ou onde é melhor: "nenhuma rua é igual a outra" - depende de como você está, pra ser bom ou ruim.
Ninguém = ninguém
Me encanta que tanta gente sinta
(se é que sente) a mesma indiferença
A indiferença perturba, incomoda. A indiferença é tão marcante que Gessinger ainda reforça, semanticamente e foneticamente com a aliteração SINta (SE é que SENte). Afinal, já que é indiferença, provavelmente as pessoas nem sintam mesmo.
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há palavras que nunca são ditas
Há muitas vozes repetindo a mesma frase:
Será que há palavras que nunca são ditas por haverem muitas vozes repetindo sempre a mesma frase?
Ninguém = ninguém
Me espanta que tanta gente minta
(descaradamente) a mesma mentira
Mesma jogada do quadro anterior. Aqui a ênfase se dá através de MINta descaradaMENte a MEsma MENtira. Não há pudor em mentir. O cenário narrado é triste: as pessoas são indiferentes e mentirosas: se escondem na diferença, pois "ninguém = ninguém"...
São todos iguais
E tão desiguais
uns mais iguais que os outros
Além da citação (fantástica, no contexto) de Orwell, as palavras formam como um jogo de espelhos: São iguais, porém desiguais - porque no fim das contas uns são MAIS iguais que os outros. Se uns são mais, outros são MENOS iguais - ou mais diferentes. Privilégio? Superioridade? O que é ser "diferente" num mundo onde a indiferença e a mentira reinam? Eles são exceção ou causa deste mundo podre?
Há pouca água e muita sede
Uma represa, um apartheid
O fato de haver POUCA água e MUITA sede (o contraste que reforça as imagens) é realçado pelo jogo de imagens: tanto a represa quanto o apartheid servem para SEPARAR - água ou pessoas.
(a vida seca, os olhos úmidos)
E já que se fala da represa, nada como citar o romance de Graciliano Ramos (Vidas Secas) como fonte de tristeza, que umedece os olhos - o que umedece os olhos numa vida seca, a não ser as lágrimas de tristeza? Tristeza esta EXATAMENTE por viver essa vida seca - de sentido, de alimento e de esperança. Este mundo indiferente e mentiroso produz este tipo de coisa.
Entre duas pessoas
Entre quatro paredes
Tudo fica claro
Ninguém fica indiferente
"Entre duas pessoas" e "entre quatro paredes" indicam situações que nos envolvem diretamente. E este é o único caso onde "ninguém fica indiferente". O que se pode inferir: as pessoas só se sensibilizam quando o problema é com elas. Ou seja: sentem "indiferença", "mentem descaradamente" - mas não ficam indiferentes "entre duas pessoas" ou "entre quatro paredes". Aí "tudo fica claro".
Ninguém = ninguém
Me assusta que justamente agora
Todo mundo (tanta gente)
tenha ido embora
"justamente agora", quando o autor chega a ponto de cantar o egoísmo das pessoas em alto e bom som, de esfregar na cara das pessoas essa crise de valores... "todo mundo (tanta gente)" foi embora!
(...)
O que me encanta é que tanta gente
Sinta (se é que sente) ou
Minta (desesperadamente)
Da mesma forma
É realmente encantador que um grande número de pessoas caia nesta armadilha de hipocrisia e egoísmo, e se negue a encarar os fatos - "da mesma forma", condicionados que são a viver sem questionar. E quando confrontados, "vão embora". Como o menino que leva a bola embora por não ter sido escolhido para o time principal.
O engraçado é que a letra começa com uma abordagem e viaja para outra bem diferente. Se é proposital ou não, não sei dizer - não a escrevi. Claro, uma análise é, antes de tudo, uma opinião - ou ainda: uma interpretação. O próprio autor pode negar cada palavra do que disse aqui, ainda que isso provavelmente não altere nada do que escrevi. And that's all, folks.
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