quinta-feira, 15 de julho de 2010

Moloko Mesto

Capa de A-LEX (2009)

Este é um texto sobre o Sepultura cuja menção a formação clássica é uma só, e em tom nada lamurioso: a banda sobreviveu ao caos, recriou-se e está firme e forte. Os dois últimos discos, "Dante XXI" e "A-Lex" são excelentes, criativos e, mais importante, relevantes.
O primeiro, de 2006, baseia-se na "Divina Comédia", de Dante Alligheri. Pesado, rápido e com riffs matadores. Despedida de Igor Cavalera (me recuso a escrever com dois "g"!), mostra o grupo inspirado e a vontade com os temas (inferno, purgatório e céu). abordados na obra Dark Wood of Error, Convicted in Life (uma das melhores músicas da carreira do grupo), City of Dis, False, Ostia, Crowed and Mither... só porradão. A arte gráfica é muito bem feita, o encarte é caprichado...
Capa de DANTE XXI (2006)

Mas o objetivo deste texto é ater-se ao mais recente disco dos caras, "A-Lex", baseado no livro "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess, que também virou filme nas mãos de Stanley Kubrick. De cara, o título muito bem sacado: "A-Lex", que é "sem lei" em Latim, é também o nome da personagem principal da obra, Alex DeLarge. Trocadilhos são sempre perigosos, mas este foi certeiro.
O Sepultura segue o padrão de "disco conceitual" estabelecido pelo rock progressivo ainda nos anos 70: dividiu a obra em partes (loucura, prisão, tratamento e redenção), cada uma apresentada por uma intro (A-Lex I, II, III e IV), todas muito legais. Desnecessárias? Não creio, pois realça a escolha estética da banda - contar uma história estruturando-a em partes. O que, como nos diz Forster, é o que um romance faz: contar uma história. Mas, vontando ao disco: se é que podemos chamar assim, este é o único traço conservador de "A-Lex".
Após a primeira intro, marcial, a pancadaria come solta no alucinante hardocre Moloko Mesto (a dobradinha também tem sido usada para abrir os shows da atual turnê), onde Alex convida seus amigos a participarem da festa, um "verdadeiro show de horrores". Aqui outra bola dentro da banda: aproveitar o "Nadsat", um idioma que mistura o russo, o inglês e o cockney (por exemplo, rozzer é polícia, drugo é amigo, chavalco é homem, moloko é leite, mesto é lugar), usado na obra. Alex é irreverente e abusa dos demais; justifica sua violência extrema e seus atos questionando o sistema corrompido e doente que vivemos. Este questionamento e até mesmo sua ironia irrompem na tribal "Filthy Rot", onde o Sepultura mais percussivo, da fase Chaos AD e Roots, aparece. Dela para a sinistra "We've Lost You", mais um destaque do álbum - e aqui não se pode deixar de falar de Derrick Green. O cara aguentou (e aguenta) um bocado por ter entrado na banda, mas é justo também dizer que muito do renascimento da banda passa por ele. A parceria com Andreas Kisser nas letras melhora a cada dia, e seu talento vocal, nunca negado mesmo pelas viúvas mais xiitas, é cada dia mais evidente. Se no "Dante XXI" ele opta pela gritaria desenfreada, opção, creio, devido a necessidade de retratar o inferno de Dante em pleno século XXI, neste disco sua voz está mais densa, grave, beirando o gutural em alguns momentos. Nesta "We've Lost You" ele tem uma das suas grandes performances desde sempre. De forma intensa sem deixar de ser claro (o que é raríssimo em vocallistas de thrash e death metal, para ficarmos nos tipos que usam este tipo de voz), manda de forma arrepiante passagens como "amor é um fracasso, ódio é apenas outra armadilha mortal", "mentir é justificar outra mentira que você adota como verdade" ou "morte é parte da vida como a paz é parte da guerra. Só preciso clarear minha mente para aprender os dois lados". Mas eis que a reviravolta na vida de Alex começa: ele é preso pelos agentes do mesmo sistema que ele odeia e escolheu viver a margem. E, sem perder a pose, confessa: "O que eu faço, faço porque gosto" (a rápida "What I Do"). Esta primeira parte é metal e hardcore, sem respiro.
"A-Lex II" nos indica que é hora do tratamento: "The Treatment" entra como uma locomotiva. Alex já dá os primeiros sinais do tormento que virá: "meu sangue é frio, perdi todo o meu controle. Só resta um pouco de mim". Daí "Metamorphosis", esses sinais avançam. O instrumental é preciso ao realçar a insanidade da personagem: a música é cadenciada, o começo sem peso ou distorção descamba para a pancadaria, mas não fica em um só andamento. Berra Alex (ou Derrick): "Eu não sou o homem que costumava ser. Sou alguma outra coisa, este não sou eu. Estou vivendo a minha própria metamorfose". Na faixa mais longa do disco, "Sadistic Values", outra amostra de como a banda tem saído da mesmice da maioria dos grupos de metal. Outro início lento, Derrick cantando de forma suave, subindo lentamente - outra performance teatral: Alex, aqui, se questiona o que ele fez para merecer tal agonia, até chegar a conclusão que valores sádicos o assombram. O "crescendo" do instrumental só nos faz embarcar no sofrimento da personagem, até a porradaria final. O assombro final de "Sadistic Values" confrontado com a cadência inicial de "Forceful Behavior" é outro grande momento do álbum - aliás, o trabalho de guitarra nesta música é muito bem feito. Andreas Kisser, outro que foi criticadíssimo, mesmo pelas suas escolhas "off-Sepultura", tem que ser elogiado: o cara é um monstro! Os timbres, as texturas, os arranjos... além de ser co-autor de todas as músicas. Aguentou calado e, adotando um clichê futebolístico, provou "no campo" o seu valor. Sozinho faz mais barulho que muita dupla ou trio de guitarristas aí. Sem perder qualidade artística. E aí reside a importância de Paulo Xisto Jr, que muita gente não percebe por ser óbvia demais: Andreas só consegue ser o que é, em estúdio e ao vivo, porque tem um baixista competente que segura os graves na cozinha.
A terceira parte é onde Alex se submete a tal experiência, "tratamento Ludovico": uma terapia experimental de aversão, desenvolvida pelo governo como estratégia para deter o crime na sociedade. O tratamento consiste em ser exposto a formas extremas de violência sob a influência de um novo soro, como ver um filme muito violento. Alex é incapaz de parar de assistir, pois seus olhos estão presos por um par de ganchos. Também é drogado antes de ver os filmes, para que associe as ações violentas com a dor que estas lhe provocam. A experiência é retratada em "The Experiment", cujo fim deixa claros os efeitos dela em Alex: "no choice, no more".
A vida após ser liberado do hospital, onde Alex recebe a vingança de alguns que outrora havia atormentado é retratada na ótima e pesada "Strike" - outro ponto alto de Derrick Green: "não sou líder dos meus atos, não escutou minha mente. Vivo uma vida no submundo. Estou tão f..."
Enough Said, e a constatação do caos: "se você não pode dizer o que quer dizer, então o que você diz não tem sentido". Esse tratamento o torna incapaz de qualquer ato de violência (nem mesmo em defesa própria), bem como de tocar uma mulher nua. Como efeito secundário, também não consegue ouvir a 9ª Sinfonia de Beethoven — que era sua peça favorita. Peça esta presente em "A-Lex", com o sugestivo nome de "Ludwig Van", que fecha a terceira parte, em que o Sepultura toca com uma orquestra de doze músicos regidos pelo maestro Alexei Kurkdjan.
"A-Lex IV" e outra pancada, "Paradox". Ao final do livro de Burgess, Alex é abandonado por todos e sua situação se reverte com a ajuda de uma das vítimas de sua crueldade. E a letra de "Paradox" realça esse contraditório: "a escolha de deixar o livre arbítrio de alguém para trás leva a menta a um explosivo paradoxo". As guitarras, na parte cadenciada, lembram muito o timbre de "Chaos AD", o que por si só já é um grande sinal - mas a faixa é ótima, um final a altura para um grande álbum. A mensagem final de Derrick fica como um aviso: "meu livre arbítrio morreu quando eles tomaram minha mente".
E outra vez o Sepultura caprichou na parte gráfica. O álbum é bonito mesmo, bem feito, a capa é ótima, composta a partir de diferentes elementos das esculturas de Kris Kuski.
Destaque ainda a estreia de Jean Dolabella em estúdio. Substituir Igor Cavalera não é para qualquer um, ainda mais depois da performance marcante, embora mais direta, de Igor em "Dante XXI". Sem jogar pra galera, Jean agregou muito à banda. Músico competente, bate muito forte ao vivo. Creditado como co-autor de todas as músicas, além do co-arranjador em "Ludwig Van". Segundo ele mesmo, o Sepultura escolheu trabalhar em um repertório estruturado com poucos refrões e solos. "Foi um processo natural, pois o repertório surgiu a partir de improvisações em estúdio durante três meses. Além disso, nós procuramos fugir dos clichês de estrutura de composição e não nos preocupamos com riffs, refrões e coisas do tipo". Ou seja: coragem e atitude. Condições necessárias para levar esta lenda da música pesada em frente.




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1 Comentários:

Às 7 de agosto de 2014 às 14:58 , Anonymous Sérgio Soer disse...

Do caralho esta resenha, o sepultura continua vivo e botando pra quebrar, se destacando pela criatividade e qualidade de todos na banda, é porrada na orelha sim!

 

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